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Crônicas em texto

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Tudo fora do lugar

Um amigo perguntou, cortesmente, como eu estava. Senti uma vontade enorme de desabafar... Mas, como ele poderia pensar que eu estivesse demente, Vacilei um pouco e assumi o risco. Não me contive e me pus a falar: Meu papagaio me aporrinha se queixando de dor de dente O galo do vizinho que me acordava de madrugada, Agora canta desafinado como uma galinha d’angola Disputando sinfonia com o Sabiá da mangueira. Até a perereca que vivia coaxando quando chovia E fazia banquete com grilos, mariposas e muriçocas, Está do tamanho dum sapo boi com a ração dos cães da dona Sônia. Pior é o gato safado da Marta que, não caça mais rato ou barata. Depois que ralhei com ele, vira e mexe, o doido mija no meu sapato. E, no meio da madrugada, o bandido saltita de propósito Na frente do sensor de alarme da garagem pra que ele dispare, Só pra me acordar e, quando olho pela câmera, ele está lá balançando o rabo, Parece a Anita no carnaval de Olinda. Não, não tô bem. Como poderia estar se tudo parece fora do lugar? Fora isso, só o Diazepam que parei de tomar.

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Toma que o filho é teu

Nasci prematuramente devido a conflitos políticos, vividos por meus pais, e essa coisa nunca me contaminou, além disso, trocar voto por algum tipo de favor ou dinheiro, sou completamente avesso a isso! Sempre fui técnico e, como arquiteto, construí muitas obras por aí. Há alguns anos, no período de campanha política, meus dois irmãos, que foram contaminados pelo vírus da política, estavam candidatos a deputados estaduais. Eis, que, no prédio em que moro, escritório no térreo e meu apartamento no pavimento superior, lá pelas 8h da noite, assistindo ao JN, ouvimos o som insistente da campainha. É alguém pedindo ajuda pra votar em um dos meus irmãos candidatos, quer apostar? Então minha esposa se levanta do sofá e, da sacada do apartamento, olha pra ver quem perturbava naquele horário. Lá em embaixo, uma mulher com uns 26 anos de idade com uma criança no colo, que aparentava ter uns seis meses, fala bem alto pra ela: — Quero falar com o Adaury! Sem esboçar reação alguma, porém com o rosto transfigurado com aquela cena, minha esposa ouve o apelo, entra na sala e fala pra mim: — Tem uma mulher com uma criança no colo aí em baixo que quer falar contigo! Na verdade, eu já tinha escutado a voz aguda e cirúrgica da mulher e, confesso, senti um friozinho na barriga e parti pra defensiva e fui logo dizendo: — Essa mulher é doida!? Quem será? O que será que ela quer? Só pode ser doida! Quando já me levantava para atendê-la, ouvi, novamente, a mulher gritar lá embaixo: — Quero falar com o Adaury! Chame ele pra mim! Pense num turbilhão. Assim estava meus pensamentos. Fui descendo a escada devagarinho pensando numa saída de um beco em que nunca havia entrado. Quando cheguei no patamar da escada, olhei a figura na frente das barras de ferro do portão, com o bebê nos braços, pensei que eu poderia estar na situação contrária, ou seja, atras das grades. Mas, também confesso era um mulherão! — Boa noite, senhora. Murmurei com uma voz quase inaudível, esperando que a reação dela fosse dizer: Toma que o filho é teu! Então ela falou num tom mais suave: — Tu que é o Adaury? — Sim, sou eu! Respondi em tom firme, porém não tanto amedrontado. — Aquela obra ali na rua das Bananeiras é tua? — Sim, algum problema? — Eu queria que tu me desse aquela madeira que tá lá na frente, pra eu arrumar meu barraco. Nem pestanejei e tampouco perguntei onde ela morava. — Claro, é toda sua. Amanhã mandarei o mestre de obras deixar lá pra você. Ainda bem que minha mulher, lá na sacada, viu e escutou toda a conversa, caso contrário, como eu iria explicar todo aquele modo imperativo da dona do barraco? Isso poderia ter sido o indicativo de um divórcio. Mas não erramos no comentário, foi um pedido de compra de voto! O mestre de obras, depois me falou que viu, na parede da casa dela, cartazes com retratos dos dois irmãos. Um do lado do outro. Paguei pelo susto.

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